Fantasia, aquele filme da Disney de 1940. A premissa: criar os desenhos de acordo com a interpretação da melodia.
Decidi fazer isso com um texto. Abaixo segue o rascunho. Calculei um tempo médio de leitura para que se possa ler enquanto toca a música, tentei meticulosamente sincronizar tudo.
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Shine on you crazy diamond (parts I-V) - 2011
(00:00/02:09)
Finda outra madrugada, há de se
atrever o sol nascente a pairar sobre o plano abandonado, fúnebre,
insípido. Insípidos hão de ser os raios iniciais, lançados a céu
aberto em matiz amarelo-esbranquiçado, densos, translúcidos,
lerdos. O caminho percorrido, em toda a extensão domada pelos feixes
luminosos, outrora tácito, revelado então pelo semi-brilho, ou,
antes, banhado em falaciosos fulgores. Em iminente jornada, atreve-se
o sol nascente a desfalecer a noite.
Ondas, em furor rancoroso, quebram,
rebentam-se em sede de sal nas rochas mortas, na matina da praia ao
lado, ao que rondam no céu as gaivotas em alerta, inquietas pela
fútil semi-claridade. Diz-se o primeiro raio audaz a surgir, e
sondar por entre as árvores pretas do bosque cinza, raios pálidos
por entre as frestas estreitas, em neblina brilhosa, fluida e
esquiva, árvores pretas desfocadas adentro, e adentro no cemitério
em escombros. Ao calor despertam os troncos, e as folhas, e os restos
do entulho do mundo, pouco a pouco, em tênue aquecimento, e breve
vivacidade, vide as gotas de chuva vespertina, tangíveis no solo
seco.
Túmulo a túmulo, sobre as efígies,
tomam posse da terra os fachos de luz, pobres, vacilantes, tênues,
audazes. Não o bastante, ainda, a fazerem acordar o ambiente,
vulgo-morto, fugaz, repousando em silêncio. Não o bastante; não de
todo ensolarado.
Túmulo a túmulo, cada qual domado,
um por um, pela atmosfera gradualmente revitalizada. De início, uma
lápide em momento de singular significância, sob a força bruta do
holofote a possuí-la, outrora vacilante, então intenso, quente,
vivo enfim. Em sequência, as demais incorporam o mesmo estado
ardente, em brilhante fogo, voraz calor amarelo, uma por uma, cada
qual possuída pela fúria dos raios de sol. - E vida emerge do solo
morto, junto à fumaça vaporizada dos últimos lapsos de noite.
(02:09/03:54)
Brota a primeira alma do chão
reavivado, lenta, em escala reduzida, depósito de energia não mais
atrelado a um corpo. Elemento etéreo, fluido, cortina neblinada de
fumaça branca, em esplendorosa fosforescência, o mais belo a ser
visto por um par de olhos, névoa quase úmida, em vigor de diamante
ofusca a vista, ofuscaria, houvesse espectador presente.
Brota, ascende como que quadro a
quadro, ressurge das trevas subterrâneas, visa à claridade,
transcende as barreiras interdimensionais, quebra os parâmetros da
lógica e desdenha do concreto. Quão incandescente, quase a
transparecer entidade, orgânica sombra do vazio, quão
estonteantemente brilhoso o espírito a passar por entre as camadas
de terra fria, as raízes, a grama, os girassóis, o solo. E em
sequência, qual fenômeno, demais entes a deixarem o conforto de
seus corpos, reerguerem-se em fila ao campo material, há tempos
esquecido, saqueado pela morte, aterradora mestre das vidas prévias,
colecionadora dos montes de energia já não instalados na matéria
humana. Brilhem, súditos.
Ao espetáculo esotérico segue, a poucos passos da
última lápide, abertura plena dos portões do cemitério, obras
ornamentadas em ferro, e em ferro desgastadas, reduzidas a ferrugem,
e envoltas em singelas e numerosas ramificações de hera,
supor-se-ia, afinal, o abandono de tal notável, não obstante
envelhecido lugar.
Abrem-se as portas ao lar conjunto dos etéreos
fantasmas, que assim o sejam denominados, fantasmas, reminiscências
de tempos outros. Abrem-se, e rangem os segmentos metálicos em
atrito, enunciam o piso de pedra à entrada, outrora repousante,
agora impiedosamente arranhado, fossem as ondas sonoras atingir maior
distância, ouvisse alguém o barulho estridente, e não mais seria
secreto o rito de recepção das almas ao porvir das novas companhias
recém-transportadas à esfera oculta, recém-mortas, migrantes,
andarilhas à procura de espaço tranqüilo ao descanso, espaço há
muito não mais palco de cerimônias fúnebres. Escancarados os
portões, preparados às boas-vindas.
E a pôr um dos pés adiante da linha divisória entre
as esferas interior e exterior, a posicioná-lo no campo interno aos
portões de ferro oxidado, bem-vindo o novo espectro, falecido jovem,
bem-vindo ao plano-submundo, à prole dos espíritos andarilhos. Eis
que emanam os ares das iminentes boas vindas das almas ao ilustre
companheiro, emanam os bons ares gélidos, em terra úmida
perfumados, à percepção do recém-póstumo ente, ainda hesitante,
ainda com tão somente um pé firmado em solo sagrado.
Vem a nós, rapaz!Vem a nós, que te acolhemos em lar.
Silêncio.
Vem conosco!
Outro pé adentro.
Bom, bom! Vem a nós!
Um passo.
Vem mais, mais. Vivas!
Prossegue.
Cada passo em singular lapso de determinação, cada
passo uma viva, e à caminhada efusivo estrondo: bem-vindo.
‘Bem-vindo’, clamam os mortos, em furor de encorajamento. Em
cortesias e reverências, caminha o menino rumo aos degraus da cripta
decadente, coração do lar fúnebre, lar de tantas existências
desvanecidas e esquecidas pelo espaço-tempo.
‘Assim na Terra como no Céu‘, tão santo há de
ser o solo, abandonado, sim, por aqueles que vivem, santificado, quem
a saber, por aqueles que perduram, e agora tão teu quanto nosso,
inquilino. Eis que do Céu não desfrutamos, pois em boa terra
jazemos. Vem conosco.